Quem ou o quê é o diabo que tentou o Senhor Jesus Cristo no
deserto? A idéia popular prevalecente é
que o diabo que tentou Cristo foi e é uma pessoa – uma poderosa, corporização
do mal. Uma leitura rápida dos registros de Mateus, Marcos e Lucas parece
prover suporte para esta idéia. Existe um diálogo entre o diabo e o Senhor
Jesus. O diabo sugere que seria vantajoso para Jesus fazer certas coisas que
são contrárias à vontade de Deus. Jesus repudia essas sugestões, e o diabo vai
embora.
Uma leitura cuidadosa, no entanto, revela um número de
dificuldades. Primeiro, existem dificuldades em relação às circunstâncias da
tentação. É dito expressamente em Mateus, Marcos e Lucas, que a tentação teve
lugar no deserto. Assim afirma Marcos: 1: 12-13. No entanto em uma das
tentações o Senhor Jesus é levado até ao pináculo do templo, em Jerusalém. Jerusalém
não estava situada no deserto. Lc. 4: 5. É-nos dito que o diabo levou Jesus até
um alto monte, e mostrou-lhe todos os reinos do mundo num instante de tempo.
Existe, ou existiu no deserto ou fora dele, uma montanha de onde todos os
reinos pudessem ser vistos de uma vez? Quase que se pode ouvir a reprimenda de
que estas coisas estão escritas, e temos que acreditar nelas. Verdade; mas
talvez possam ser entendidas de outra forma.
Mas as dificuldades ainda não terminaram. Existem objeções
mais sérias contra o ponto de vista de que todos os detalhes devem ser
entendidos literalmente, e que o diabo é uma pessoa. Considere a tentação em
relação ao pináculo do templo. A partir dos Evangelhos aprendemos que o Senhor
detestava tudo o que se opunha à vontade do Seu Pai. Com vista nisto, será que
podemos imaginá-lo seguindo com resignação a trás deste perigoso inimigo até
Jerusalém, e até ao templo? Podemos visualizá-los ambos subindo ao pináculo?
Será que visualizamos Jesus lá à beira de cair? Será que o Senhor permitiria um
tentador maligno trazê-lo até esse ponto sem que antes tenha dito, Não? Fazer
tais concessões a um tentador certamente não seria consistente com o que lemos
sobre o caráter de Jesus.
Ainda, pense na tentação de se curvar diante do diabo, e
receber todos os reinos do mundo. Imagine que alguém importante e poderosa
fizesse esta a oferta a nós. Como reagiríamos? Não importa quão grande
seria o tentador, saberíamos que ele não estava numa posição de cumprir tal
promessa. A tentação não seria real. Seria para nós mais uma anedota do que uma
promessa real. Certamente Jesus, que tinha tanto respeito pela Palavra de Deus,
e que sabia muito bem que “do Senhor é a terra e a sua plenitude”, não seria
nem no menor grau tentado por qualquer impostor (pois seria um impostor) que
lhe fizesse uma oferta extravagante e impossível de se cumprir como essa.
A Destruição do Diabo no Calvário
Qualquer interpretação das Escrituras que não faz sentido
deve ser rejeitada. Temos que ver se a tentação no deserto pode ser entendida
de uma maneira que faça sentido. Mas antes de fazer isso, primeiro queremos
examinar outra passagem que nos pode ajudar. Ao passo que Jesus resistiu ao
diabo no deserto (não importa como isso seja entendido), ele destruiu o
diabo quando foi crucificado. Hb. 2: 14 declara: Esta passagem diz-nos que
porque “os filhos” (ou seja, os que são salvos em Cristo, como se vê nos
versículos anteriores) são criaturas de carne e sangue, Cristo também teve uma
natureza semelhante à deles. Porque veio ele com a nossa natureza? Para poder
morrer. E porque era necessário que ele morresse? Para que, pela morte,
destruísse o diabo.
Suponha que a idéia popular seja verdadeira, e que o diabo é
um ser maligno poderoso. É razoável supor que Jesus Cristo teria que vir com a
nossa débil natureza humana e morrer na cruz para destruir esse monstro? Como
poderia a morte de Cristo ter o efeito da destruição desta suprema corporização
do mal – se o diabo deve ser visto como tal? E se a morte de Cristo era para o
propósito de destruir um monstro, não estaria morto o monstro agora? Aqui se
pode ver que é necessária outra explicação. É necessária uma definição do diabo
que faça sentido a par dos relatos da tentação que se encontram nos Evangelhos,
e da passagem citada de Hebreus. Pode essa definição ser encontrada?
Desejos que Vão Contra a Vontade de Deus
Alega-se que a seguinte definição remove os problemas: o
diabo é um símbolo dos desejos humanos que vão contra a vontade de Deus. Não
existe falta de apoio bíblico para esta definição. O nosso propósito imediato,
no entanto, deve ser; como esta definição encaixa no relato da tentação no
deserto, e no ensinamento de Hebreus 2: 14.
O diabo que tentou o Senhor Jesus era os seus próprios
desejos humanos. Essa é a proposição que devemos examinar agora. Praticamente
não é preciso mencionar que existe um grande conjunto de evidências,
particularmente em Hebreus, de que o Senhor Jesus possuía uma natureza como a
nossa. Novamente nos referimos a Hebreus 2: 14 – à primeira parte do versículo:
“Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele,
igualmente, participou...” As palavras, “também”, e “ele” e
“igualmente” foram escolhidas para sublinhar o fato de que o Senhor Jesus
realmente possuía uma natureza como a nossa. No versículo 17 do mesmo capítulo
repete este mesmo ponto: “Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se
tornasse semelhante aos irmãos”; e Hebreus 4: 15 diz que “foi ele tentado em
todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado”. Não desonramos Cristo
quando dizemos que ele foi tentado como nós somos. Damos-lhe ainda mais honra,
porque reconhecemos que, embora ele tivesse sido tentado como nós o somos, ele
nunca pecou. Nisto ele foi único.
Agora tentemos resolver os detalhes da tentação no deserto.
Imediatamente depois do seu batismo, o Senhor Jesus recebeu o Espírito Santo e
ouviu uma voz do céu dizendo, “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo”. Estes
novos poderes, e este novo estatuto anunciado, abriram possibilidades tanto
excitantes como perigosas. Embora a sua vida tenha sido, até este ponto, uma
preparação, esta nova situação requeria um curso curto e intensivo de
preparação. Este tomou a forma de tentações onde as possibilidades desta nova
situação foram exploradas ao máximo. Duas vezes as tentações foram apresentadas
pelas seguintes palavras, “Se és o Filho de Deus”; e duas vezes, pelo menos, a
sugestão foi feita que estes poderes acabados de receber poderiam ser usados
para motivos egoístas.
O Senhor Jesus Cristo tinha estado quarenta dias sem
comida. Naturalmente, ele sentia muita fome e os seus pensamentos eram como
iria encontrar comida. Quarenta dias antes ele tinha ouvido Deus chamando-lhe
de Seu Filho; e tinha recebido novos poderes maravilhosos. Se ele era realmente
o Filho de Deus, e se, como tal, ele possuía estes poderes, isto seria uma
ocasião para agir. Tentativamente e reverentemente, tentamos pensar que com que
tipos de pensamentos o nosso Senhor teve que lutar: “Tu és o Filho de Deus; tu
vieste para fazer a vontade do teu Pai, tens que viver. Se é para viveres, tens
que comer. E se tens que comer tem que produzir comida, porque não existe
nenhuma neste deserto.
Tu tens que usar os teus poderes milagrosos e
transformar estas pedras em pão, e garantir assim que continuarás vivo para
fazer a vontade de Deus”. Teria sido fatalmente fácil para alguém com a nossa
carne e sangue raciocinar dessa maneira. E teria sido fatalmente fácil sucumbir
a tais pensamentos. Mas se o Senhor Jesus tivesse sucumbido a isso, teria sido
pecado, e a tragédia do Éden teria acontecido novamente com conseqüência
irrevogáveis.
É difícil de imaginar o Senhor seguindo um tentador até ao
pináculo do templo; mas é fácil imaginar os seus pensamentos tendo sido levados
até esse lugar. “Se és o Filho de Deus”, ele poderá ter pensado para si mesmo,
“porque não dar aos homens uma prova desse fato? Isso garantiria o sucesso da
tua obra para Deus, e Deus seria glorificado. Atira-te daí abaixo!”
É difícil imaginar Jesus literalmente subindo a um monte do
qual todos os reinos do mundo pudessem ser visto num momento de tempo. Mas é
fácil imaginar, ele ascendendo, em sua imaginação, a um ponto de vantagem do
qual poderia ver o grande reino que o seu Pai lhe prometera. Sim, foi-lhe
prometido, e agora estava ao seu alcance, pois ele tinha grande poder. Se ele
tomasse a posse do mundo agora, o propósito final de Deus se cumpriria, e a dor
e vergonha da crucificação seriam evitadas. A idéia era atrativa. Tudo o que
tinha que fazer era curvar-se perante si mesmo – e o reino seria seu!
A tensão deste tipo era real. Era uma batalha entre a carne
e o espírito, e o espírito prevaleceu. O valor desta vivência era imenso,
porque isto apresentou a Jesus a tentações que se poderiam apresentar de um
modo mais sutil durante o seu ministério.
A Tentação se Repete
Em Lucas 4 – o capítulo que descreve a tentação – está registrado
que a multidão enfurecida em Nazaré tentou jogar Jesus de um precipício. Quão
fácil teria sido submeter-se a isso, e deixar que eles o jogassem de lá para
baixo. Então eles ficariam pasmados ao vê-lo ser gentilmente carregado pelos
anjos. A tentação era sutil, porque isto não era algo que ele tivesse planeado
antes. As circunstâncias levaram-no a esta situação, e certamente Deus estava
dirigindo as circunstâncias dele.
Mas o seu pensamento já tinha sido exercitado
sobre este tipo de situação no deserto. Ele sabia que qualquer demonstração
desse tipo não fazia parte do plano de Deus para ele, e “Jesus, porém, passando
por entre eles, retirou-se.” Tome outro exemplo, o Senhor provavelmente
vivenciou uma tentação similar à tentação das “pedras transformadas em pão”
quando pregava em Samaria, Em João 4 é nos dito claramente que Jesus estava
cansado (“Cansado da viagem, assentara-se Jesus junto à fonte”).
Existem
indicações também que ele estava com sede e fome: os discípulos tinham ido à
aldeia comprar comida; e Jesus pediu água à mulher Samaritana. O impulso de
satisfazer estes desejos naturais de descansar, comer e beber deveria ser
forte. Em circunstâncias normais teria sido permissível; mas havia trabalho a fazer,
ele recusou se distrair com estas necessidades da carne. Água, comida e
descanso tornaram-se irrelevantes. Era a vontade do Pai que Jesus continuasse
trabalhando, e isso era tudo o que importava.
Novamente Hebreus 2: 14
Os desejos humanos que foram frustrados no deserto foram
destruídos no Calvário. Enquanto houvesse a natureza Adâmica, haveria a
possibilidade de tentação. Não foi o suficiente frustrar os desejos humanos que
se opunham à vontade de Deus. Tinham que ser destruídos. E como poderia isto
ser feito senão pela destruição da fonte desses desejos – a natureza herdada de
Adão? Assim o Senhor Jesus destruiu o pecado no lugar onde ele residia. Ele
destruiu o pecado na carne.
Esta é a mensagem de Hebreus 2: 14. Jesus veio com a nossa
natureza para que pudesse morrer; para que, pela sua morte, o diabo, ou os
desejos humanos contrários à vontade de Deus, pudessem ser destruídos na sua
fonte. Jesus aniquilou “pelo sacrifício de si mesmo, o pecado” Hebreus 9: 26.
CAPRICHOS E FALÁCIAS
JÁ vimos que a idéia de que o diabo é um monstro
super-humano não se enquadra com o registro da tentação do Senhor, ou com o
ensino de Hebreus 2: 14. A
teoria tem outras fraquezas também, e talvez devamos examiná-las agora e limpar
o caminho para uma investigação mais positiva.
Silêncio Eloqüente
Já foi apontado que o tema do diabo é um tema do Novo
Testamento. Isto é, em si mesmo, significativo. Aqueles que acreditam num diabo
pessoal também crêem que este diabo estava vivo e ativo, nos dias do Antigo
Testamento. Porque é então só mencionado no Novo Testamento? É afirmado que o
diabo foi responsável pela tentação e queda do homem, e, no entanto não existe
qualquer indicação do papel fatídico atribuído a esse monstro no registro de Gênesis.
É suposto que o diabo iniciou a grande tragédia humana, mas que tem estado
profundamente envolvido desde então, exercendo grande força para assegurar-se
que o mal e o sofrimento nunca deixem a raça humana. No entanto, o longo registro
do Antigo Testamento sobre o pecado humano e graça divina nem sequer dá uma
referência incidental desde espírito maligno.
Missão bíblica Cristadelfiana.
Postado por: Evandro.